Repensando a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil
17/04/2024
Gestão territorial
Recentemente, os jornais noticiaram que representantes da indústria, mineração e agronegócio foram ao STF protestar contra restrições à aquisição de terras por empresas estrangeiras no Brasil, alegando que tais limitações prejudicam a competitividade, o desenvolvimento nacional e afugentam investidores internacionais. Por outro lado, movimentos sociais reivindicam maiores restrições a essas aquisições, em nome do desenvolvimento regional e da segurança alimentar.
O assunto é controverso, e tem por stakeholders uma multiplicidade de atores do setor privado doméstico e internacional, Administração pública e sociedade civil.
Uma análise técnica do tema mostra que, além dos debates acalorados, a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil levanta questões fundamentais sobre soberania territorial, desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Faltam estudos robustos, que sejam capazes de deslindar essa controvérsia de forma técnica, escapando da polarização do debate. É um tema complexo e urgente.
Devemos atualizar o marco legal vigente, considerando aspectos econômicos, sociais, ambientais e fundiários emergentes neste século XXI. Neste contexto, a escuta dos atores envolvidos e a colaboração entre órgãos como a Comissão de Valores Mobiliários, a Advocacia-Geral da União e o Incra podem representar um avanço significativo no aprimoramento do sistema de governança de terras. A busca é por maior transparência, eficácia e justiça no manejo desses recursos fundamentais para o futuro do país.
Na prática, a legislação vigente dificulta a compra de terras por estrangeiros no Brasil, remontando à década de 70. A Lei 5709/1971 foi uma resposta às preocupações decorrentes da intensa aquisição de terras na Amazônia por estrangeiros, especialmente norte-americanos, que culminaram em investigações parlamentares e na promulgação desse arcabouço legal.
As disposições da lei no tocante à compra de terras por estrangeiros foram revisadas no Parecer LA 01/2010 da Advocacia-Geral da União. O Parecer - ratificado pelo então Presidente da República e vinculante de toda a Administração Pública - alargou o escopo da Lei ao estender seus efeitos às pessoas jurídicas brasileiras com sede no exterior; e às pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil. Além disso, o Parecer indica que caberia ao Congresso Nacional regulamentar a compra de terras por pessoas jurídicas brasileiras com a maioria de seu capital social detida por estrangeiros e com sede no Brasil.
Na ocasião, o Advogado-Geral da União indicou que a ausência de controle da aquisição de terras por empresas brasileiras de capital estrangeiro repercute negativamente sobre a soberania territorial brasileira, com efeitos como: avanço do cultivo sobre áreas de proteção ambiental; especulação imobiliária; utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro e do tráfico de drogas na aquisição dessas terras; aumento da grilagem de terras, com proliferação de laranjas; aumento da biopirataria; e ameaça à segurança nacional pela aquisição de terras em faixa de fronteira.
O Incra indica que o Brasil possui hoje um total de 6.446.364 hectares de terras registradas em nome de estrangeiros, tanto pessoas físicas quanto jurídicas. Desse total, 2.958.935 hectares estão registrados em nome de pessoas físicas, enquanto 3.487.428 hectares pertencem a empresas. 1,84% dos 350 milhões de hectares de terras agrícolas no Brasil estariam em posse de estrangeiros. Do ponto de vista ambiental, pessoas físicas e jurídicas estrangeiras controlam formalmente 17.300 hectares de unidades de conservação no Brasil. É inegável que a legislação atual está defasada e não condiz com a realidade socioeconômica do Brasil no século XXI. Os indicadores utilizados para determinar a quantidade de terras passíveis de aquisição por estrangeiros, como o Módulo de Exploração Indefinida (MEI), são inadequados e não refletem a complexidade da dinâmica fundiária do país.
Os órgãos de registro e controle - cartórios, Incra e AGU - carecem de conhecimento técnico para avaliar arranjos e movimentos societários, o que facilita o uso de artifícios legais para a aquisição de terras por empresas estrangeiras. Para sanar essa lacuna e fortalecer a aplicação da lei, as instituições responsáveis pela fiscalização do mercado financeiro devem compartilhar informações com o Incra e outros órgãos.
Além da regulação, torna-se imperativo revisar e atualizar a legislação sobre a compra de terras por estrangeiros no Brasil. Essa revisão legislativa deve ser pautada em estudos e análises aprofundadas, que rejeitem ideologias e considerem não apenas os aspectos econômicos e regulatórios do tema, mas também sociais, ambientais e fundiários.
Apesar de haver alguns estudos sobre potencial de concentração de terras ou sobre influência na agricultura familiar, também é possível argumentar que esse fenômeno impacta positivamente no desenvolvimento econômico do país, haja visto a representatividade do agronegócio sobre o PIB brasileiro: 24%, segundo estimativas do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da ESALQ/USP.
A participação de investidores estrangeiros pode trazer avanços tecnológicos e melhores práticas de gestão agrícola, contribuindo para aumentar a produtividade e a competitividade do setor, o que, por sua vez, pode impulsionar o crescimento econômico do país. O combate aos artifícios societários para aquisição de terras é importante. Ao mesmo tempo, a existência de regras estritas para a compra de terras por empresas legítimas pode espantar investimentos estrangeiros.
É fundamental promover um debate transparente e participativo, envolvendo empresas, Administração, sociedade civil e academia, visando a construção de uma legislação que concilie o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental e a garantia da soberania territorial. Somente assim poderemos assegurar um futuro sustentável e assegurar a posição brasileira nos fluxos de capital globais.